A minha história provavelmente não é senão mais um dos vários testemunhos que existem sobre este tipo de prática, e bem sei que muitas mulheres se sentem como eu…
Há cerca de um ano, com os meus 18 anos quase acabados de fazer, engravidei de um rapaz que, apesar de já estar comigo há 2 anos, jamais teria demonstrado vontade ou maturidade para ter algo sério comigo.
Mantínhamos uma amizade colorida, onde os sentimentos eram postos de lado.
Acontece que, tal como muitas pessoas pensam, eu não fui excepção à regra e quando o meu período menstrual se atrasou eu não liguei, julgando que fosse um atraso – e o mais irónico é que o meu período sempre fora regular, mas claro, nós achamos sempre que só acontece aos outros…
Apenas no dia 24 de Janeiro tive coragem para fazer um teste de gravidez que, obviamente, anunciou um resultado positivo.
Nem sei o que senti nesse momento. É uma sensação horrível, tantas são as interrogações e as dúvidas que nos começam a bombardear (e note-se que eu já estava grávida de 9 semanas, ou seja, estava bastante sensível). Mas, de facto, era algo do qual eu já deveria estar consciencializada, uma vez que os sintomas eram evidentes – eu simplesmente não queria aceitar!!!
Acabei por contar tudo ao rapaz, tal como aos meus pais, que reagiram de forma muito distinta.
A minha mãe apoiou-me incondicionalmente, ao invés do meu pai que sentiu vergonha e não conseguiu dirigir-me palavra durante semanas. Foram momentos de desespero e dor profunda. Ouvi coisas que jamais esperei ouvir, e os meus choros e revolta eram constantes: “Porquê a mim? Porque é que isto me aconteceu? Eu preciso de apoio, será que ele não consegue ver isso?”
Ainda pior que tudo isto foi o facto de não ter apoio psicológico nem monetário do suposto pai da criança. Na altura, ele era um rapaz com 19 anos, com um emprego que lhe dava um bom salário, e alguém que eu julgava ser responsável e maduro… Tamanha ilusão, ou melhor, tamanha desilusão que eu fui ter!!!
Senti-me abandonada, triste, e se não fosse a minha mãe não sei o que seria de mim – de facto, mãe é tudo.
Recorri ao Centro de Saúde no dia seguinte, após confirmar a minha gravidez. No entanto, necessitava de falar com uma psicóloga que de momento se encontrava de férias – e, embora não tivesse a certeza de quanto tempo estava naquele momento (só soube ao certo no dia em que abortei), eu tinha uma noção de que o tempo de gestação já era longo. Eu não menstruava desde início de Novembro, portanto tinha que arranjar uma outra solução, já que a IVG só é feita legalmente até às 10 semanas.
Dia 1 de Fevereiro foi o dia do meu aborto. Um dia que jamais irei esquecer.
Inicialmente, o meu único pensamento era: “eu quero livrar-me disto o mais rapidamente possível!!!”
Cheguei à clínica e fui rapidamente atendida.
Inicialmente foi feita uma ecografia, que anunciou 10 semanas de gravidez, e de seguida falei com um psicólogo, fiz uma recolha de sangue para averiguar qual o meu tipo sanguíneo e voilá – sala de operações.
Preferi fazer uma aspiração com anestesia geral, uma vez que não queria, de forma alguma, ter recordações daquela operação. E, em menos de 5 minutos, adormeci profundamente, acordando 1 hora e pouco mais tarde.
Acordei aliviada, mas meio deslocada, nostálgica. Eu sabia que o meu ”pesadelo” tinha acabado – mal sabia eu que outro, mais tarde, iria começar.
Senti dores horríveis nos primeiros dias após a IVG e perdi algum sangue. Porém, correu tudo bem, e após isso a minha menstruação voltou e até à data tem sido regular, sem quaisquer tipo de complicações.
Fisicamente, tudo impecável. O pior mesmo é a parte psicológica…
Se inicialmente fiquei bem, hoje em dia, e passado meses – quase um ano, a verdade é que sinto um enorme vazio e penso constantemente em como seria a criança, invadida de culpa. Embora a situação fosse muito complicada, a verdade é que eu tinha o apoio da minha mãe. E o meu pai, mais cedo ou mais tarde acabaria por aceitar. E o rapaz teria que tomar outra atitude, consciencializar-se e falar com a mãe – esse sempre foi o grande ”medo” dele, já que entre eles existiam alguns dissabores. Ainda assim, tudo acabaria por tomar um rumo, e apesar da sua atitude cobarde, certamente que ele daria um bom pai.
Enfim, tudo suposições que me matam por dentro…
Era nova de mais, ingénua de mais – e verdade seja dita, só compreendemos realmente as situações quando passamos por elas.
Desculpa “filho” por não te ter deixado viver. Garanto, de facto, que jamais repetirei um acto destes, pois dói de mais. Mãe é mãe, ainda que o filho nasça ou não.
Se eu não podia contar para ninguém, significa que o que eu fiz foi errado e muito errado. Então por que razão meus pais, as pessoas no mundo em que eu mais acreditava, me deram tanto apoio? Por que razão eles não me impediram? Porque permitiram que eu fizesse o que a minha loucura me mandava fazer? Eu era inexperiente, eu tinha apenas 21 anos! Hoje sei o quanto eu era nova e não sabia quase nada da vida.
Quando amanhece, e o sol desponta no horizonte e o dia promete ser lindo, penso em porquê não saí correndo daquele consultório, em porquê não expressei meus sentimentos sem sentir vergonha deles. Gritar, chorar, me arrastar no chão de desespero, afinal, era isso o que se passava dentro de mim. Mas porquê eu tinha que ser forte? Por quem? A figura do meu pai, tão duro, um olhar ainda mais sério, pesado, frio como um mármore não me deixava desistir. E eu não desisti.
O cheiro de incenso percorria toda a sala e parecia um ritual onde eu seria a próxima vítima. Como uma execução onde a minha sentença seria a pena de morte. E não era nada disso, eu não estava sendo obrigada a nada, e isso é o mais terrível de esquecer.
Quando chegou a minha vez eu nem olhei para o meu pai. Fui, convicta de aquilo seria bom para mim. Quando a médica me perguntou: “O moço te abandonou?” Eu disse: “Sim!” Mas não era verdade. Meu Deus, não era verdade! Eu estava contando uma história que não era minha e porquê? Até hoje não encontro resposta para isso, para a minha cegueira. Eu estava desesperada…
E quando ela aplicou a medicação, eu não desmaiei. Minha cabeça rodava, rodava e eu sentia muito, muito enjoo Comecei a suar frio, meu corpo tremia incontrolavelmente. Eu não conseguia olhar para um ponto fixo. Gemia de dor, pavor. Era uma dor insuportável, uma sensação indescritível. Parecia que eu estava à beira de um abismo e ia cair a qualquer momento.
Não foi bem uma anestesia, eu sentia todas as dores, o aparelho me sugando por dentro como se estivesse arrancando meu estômago sem anestesia alguma. Ali sim, eu queria sair correndo, mas já era tarde… E pareceu não acabar nunca. Pareceu durar 5 horas naquela mesa. Minha boca secou, parecia que eu nunca havia bebido uma gota de água em toda minha vida, eu não conseguia fechar os lábios. “Socorro!” Eu queria gritar. “Pára! Pelo amor de Deus. PAiiiiii…. Estão ferindo minha alma…”
Quando terminou, eu tinha a sensação de ter sido violentada. Talvez um estupro seja assim, como se você fosse um saco vazio, uma boneca de pano… Alguma coisa lhe foi tirada. E tinha sido mesmo, para sempre! Não foi arrancado apenas um feto, mas a minha chance de ser feliz, os meus sonhos, a minha paz, a minha auto-estima, tudo! Tudo foi arrancado ali, naquele dia. É como um acidente em que é amputada uma parte do seu corpo e você tem que aprender a viver sem ela. Sempre será difícil, sempre.
Na viagem de volta o mundo não parecia ser o mesmo. Nunca vou me esquecer de que o dia estava ironicamente lindo. Alguma coisa havia mudado e eu ainda não tinha me dado conta de que o que mudou fui eu. Foi dentro de mim. É como se as escamas que cobriam meus olhos começassem a cair a partir daquele momento. Aparentemente eu era a mesma pessoa, quem me visse nunca pensaria nada. Nos dois dias seguintes apenas dormi. Eu estava em choque, não tinha sido comigo, não podia ter sido. Eu que sempre amei crianças, sempre. Não, aquela escolha não tinha sido minha. Quem me dera isso fosse verdade…
Nos três anos seguintes tive pesadelos todas as noites. Eu não comia, só chorava. Chorava de saudade dele, de um ex-namorado que era o amor da minha vida e não um pai inconseqüente como eu havia pintado. Caí num estado de depressão intenso, crônico, grave… de não ver ninguém, não comer, desejar a morte desesperadamente. E ela não veio…
Após esses três anos confinada, quando consegui sair na rua, voltar a ver gente, trabalhar, eu passei a encenar. Minha vida virou um palco e eu deveria fingir para sempre. Virei uma atriz de mim mesma, rindo sem querer rir, abraçando sem querer abraçar, nada mais fazia sentido. Não havia motivação. E o pior de tudo é não poder contar para ninguém o que eu fiz. Sepultar o que ainda estava vivo e sangrando, uma ferida aberta, uma hemorragia intensa.
Se eu não podia contar para ninguém, significa que o que eu fiz foi errado e muito errado. Então por que razão meus pais, as pessoas no mundo em que eu mais acreditava, me deram tanto apoio? Por que razão eles não me impediram? Porque permitiram que eu fizesse o que a minha loucura me mandava fazer? Eu era inexperiente, eu tinha apenas 21 anos! Hoje sei o quanto eu era nova e não sabia quase nada da vida.
Mas o próprio coração tem mesmo as respostas, só que às vezes não conseguimos ver os sinais. São sinais bem pequenos, sutis e se você estiver envolvido demais no desespero não pode enxergar uma chance, uma pequena chance em algum lugar dizendo para você não fazer isso.
Até mesmo e-mails que você ignora, pode ter ali um escape que vai mudar a sua vida para sempre. É como um “estalo” salva-vidas.
Mas eu não queria ver, eu fechava os olhos quando alguém tentava me fazer mudar de ideias. Mas porquê? Ah se eu tivesse uma segunda chance…
Mas o meu pagamento foi a minha vida. E não é como um criminoso que tem uma sentença estabelecida de 5 a 10 anos de prisão. Minha prisão é eterna. Sou prisioneira de mim mesma.
Nessa fase, tive uma imensa frustração com a religião. Eu achava que Deus estava me apoiando, que aquilo era permitido por Ele. Que seria melhor para mim. Falta de conhecimento.
Que amor era esse capaz de matar? Tão bom ao ponto de anular tudo em vão?
Certas escolhas e, porque não dizer, todas, somos nós que fazemos. Nós somos responsáveis por aquilo que escolhemos e eu só fui ver isso depois. Ver que aquilo não foi o melhor para mim, aliás, foi a pior atitude que já tomei em toda a minha vida. Ali foram arrancados os meus sonhos, meu sorriso verdadeiro, minha alegria de viver, minha própria identidade. Sem esperança o ser humano não consegue viver, ele apenas existe.
Não foram apenas pesadelos que tive. Tive sonhos com uma criança que não me reconhecia. E ela era linda. Não houve nenhum relacionamento entre nós enquanto ela esteve dentro de mim. Eu achava que a gente só amava uma criança depois que ela nascesse, quando já estivesse maior e bonitinha. Só se você convivesse com ela.
Cresci ouvindo minha mãe dizer que o parto era a coisa mais horrenda que uma mulher poderia viver. Que para ela havia sido um trauma, uma coisa de que ela se arrependia e não queria viver de novo. Ouvir aquilo para mim significava que seria terrível para mim também, eu não queria ter parto normal. Alimentar o medo é alimentar um animal que irá te devorar no final.
A menina que brincava de boneca, a menina doce havia se transformado numa louca desvairada sem sentido. Não se explica um ato sem sentido. Como julgar as pessoas agora? Como ter opinião formada sobre assassinos? Quem sou eu agora?
(Depoimento de Daniela, nome fictício)
Natália tinha 27 anos quando ficou grávida em consequência de uma única relação sexual com um parceiro que não voltou a ver. A pressão social e do meio em que vivia levou-a a dirigir-se à Clínica Dâtor para abortar com a pílula RU-486. À saída, o seu pesadelo ainda mal tinha começado.
A minha história começou quando eu tinha 23 anos. Trabalhava numa empresa de publicidade em Madrid e ganhava um bom ordenado. Foi aí que conheci um rapaz que era auditor de contas. Chamava-se Patrick e viajava constantemente de um escritório para outro em Espanha. Apesar de eu ter tido a impressão de que ele não era muito bom da cabeça, começámos uma relação.
Um dia, mudaram-me de departamento e não me fizeram contrato, de modo que me zanguei com eles e procurei outro emprego. Encontrei um anúncio num jornal em que pediam telefonistas espanholas. Quando lá fui, era uma agência de contactos de raparigas… E pensei: “Onde eu me fui meter!” Mas entrei e acabei por aceitar o trabalho. Agradava-me porque nunca via os clientes, nem eles me viam a mim. Pareceu-me discreto. Ganhava o suficiente para pagar a renda e ainda para alguns caprichos. O Patrick conseguiu localizar-me na nova empresa e, numa das vezes em que nos vimos, tivemos relações sexuais. Foi a única vez, mas bastou: com um atraso de dois dias, soube logo que alguma coisa se passava. Sempre fui certa, nunca tinha tido um atraso assim. Não queria suspeitar de uma gravidez, mas os dias passavam e o período não vinha.
Havia uma rapariga espanhola que trabalhava como empregada de limpeza no escritório e que ficara sem casa. Tive pena dela e propus-lhe que fosse para minha casa. Esteve lá durante dois meses. Lembro-me de que, um dia, comentei que tinha estado com o Patrick e ela perguntou-me:
– Não estarás grávida?
Desatei a rir.
– Que disparate! Havia de ser muita coincidência, ficar grávida na única vez em que fui para a cama com ele…
No entanto, talvez por intuição, informei-me junto de colegas minhas que tinham sido mães ou que tinham abortado. Embora não percebessem porque lhes fazia perguntas por causa de um atraso tão pequeno, aconselharam-me a comprar o teste na farmácia. Fui logo e pedi o mais fiável do mercado. O farmacêutico explicou-me como funcionava: se aparecesse uma risca vermelha, estava grávida. Ainda que fosse apenas ligeiramente rosada, também significava o mesmo. Quando o fiz, apareceu uma mancha vermelha escura.
Caí ali mesmo, na casa de banho do emprego. Pus-me a chorar. Até as minhas colegas se assustaram e interrogavam-se:
– O que é que ela tem?
Ainda assim, queria acreditar que era engano. No regresso a casa, comprei outro teste, para ter a certeza. E novamente deu positivo. A caminho de outra farmácia, disse para comigo: ” Natália, o facto de tu não aceitares não significa que não aconteça”. Foram dias terríveis. Eu vivia do meu trabalho, que me permitia pagar o andar. Mas, se levasse por diante a gravidez, teria de deixar de trabalhar e, claro, não poderia pagar a renda, nem comer… E, quanto ao pai, nem sequer podia contactá-lo. O Patrick andava sempre a viajar de um lado para o outro e não queria ter telemóvel. Telefonar para casa dele ou para o emprego era quase sempre uma perda de tempo. Nem sequer cheguei a falar com ele. Algum tempo depois, soube que estava em processo de separação da verdadeira companheira, de quem eu, obviamente, não sabia nada.
Também soube que, para além de alcoólico – coisa que já sabia -, o Patrick era toxicodependente. E por isso não estava eu disposta a passar, apesar de ele sempre me ter tratado muito bem.
Lembro-me de que fui a Alicante ver as minhas amigas. Empenhei-me em vê-las a todas ao mesmo tempo e disse-lhes:
– Vão ser tias.
A primeira coisa que fizeram foi uma cara de estranheza. Depois disseram-me:
– Tens de abortar! Como é que te vais governar com uma criança?
– Pois é… – disse-lhes eu – mas não tenho coragem.
– O que vais fazer? E o pai?
– Não consigo localizá-lo – queixei-me.
E a coisa ficou assim.
Mas, quando regressei a Madrid, comecei a sentir-me mal, com os incómodos típicos da gravidez: enjoos, tonturas… Um dia, estive tão mal que não parei de vomitar. Tive de telefonar para o 112 e a médica que me viu obrigou-me a ir para o hospital de ambulância. Fizeram-me uma ecografia. Já estava grávida de cinto semanas e a enfermeira disse ao médico:
– Veja como ele se mexe!
Eu via qualquer coisa a piscar, mas não conseguia distinguir.
A enfermeira explicou-me que “aquilo” que estava a piscar era o coração do bebé. E eu pensei: “Mas é só uma bolinha, ainda não é nada e já tem um coração a bater…”. Impressionou-me muito.
Nessa mesma noite, deram-me alta. Levaram-me numa cadeira de rodas para o corredor, onde fiquei perto do serviço de Ginecologia e Obstetrícia. Ouviam-se bebés a chorar. E eu não estava certa de conseguir suportar isso quando o meu filho nascesse. Mas, depois, pensei que teria tempo para aprender. Não queria ter a criança, mas também não queria abortar.
Uma das minhas amigas de Alicante achou-me tão mal que veio para Madrid comigo. Não parava de me dizer:
– Olha para ti! Tens de abortar, não podes continuar assim, parece que estás a morrer…
Era porque estava a ficar desidratada: não conseguia comer e vomitava a toda a hora. A minha amiga insistia. Telefonou inclusivamente para uma clínica para saber quanto custava abortar. Mas eu não tinha dinheiro suficiente. O meu ordenado já não era como dantes.
Num dia em que me sentia melhor, a minha amiga não pensou duas vezes e marcou uma consulta na Clínica Dátor, em Madrid. E emprestou-me o dinheiro. Apesar de me sentir muito mal, tive de continuar sem comer para poder fazer as análises. Passei francamente mal. Disseram-me que podia escolher entre dois métodos: por aspiração ou com a pílula abortiva. Como estava grávida exactamente de seis semanas e cinco dias, deixaram-me escolher a RU-486, a pílula abortiva, que é permitida até às sete semanas. Nunca aceitaria o método da aspiração.
Depois, vieram a papelada, as análises, a ecografia… Foi tudo feito no mesmo dia. Quando falei com o psiquiatra, expliquei-lhe:
– Vivo sozinha, os meus pais não moram cá e acho que não me vão apoiar nisto. O pai e eu terminámos a nossa relação e ele também não sabe de nada.
De maneira que, das três causas admitidas, aplicaram-me a dos “problemas psicológicos para a mãe”.
Embora eu nunca tenha estado convencida de que queria abortar, toda a gente me dizia que tinha de fazê-lo.
Está bem, não queria tê-lo, mas matá-lo também não. Estou convencida de que se a minha amiga não tivesse insistido tanto, se não me tivesse praticamente obrigado a isso, eu não teria abortado. Por dois dias, abortei; dois dias depois já não me teriam deixado utilizar a RU-486 e, então, não teria abortado. Dois dias.
A minha amiga explicou-me que tinha de tomar dois comprimidos e, quarenta e oito horas depois, outros dois. Durante esse período de tempo, teria uma hemorragia e expulsaria o embrião. Estendeu-me os dois comprimidos com uma garrafinha de água. Eu só sabia que não era capaz de os tomar.
– Não sou capaz. Desculpem, mas não vou tomá-los – disse-lhes.
A minha amiga e as enfermeiras insistiram. Que não. Que sim… E a única coisa que me passava pela cabeça era que, no momento em que os tomasse, não haveria volta a dar. Depois, mesmo que quisesse, já não poderia recuperar o meu bebé são. A enfermeira insistia porque tinha outra rapariga à espera. E eu vi-me tão ultrapassada que tomei os comprimidos sem tornar a pensar.
Quando me apercebi do que tinha feito, comecei a sentir-me mal e saí da clínica com o corpo todo a tremer. Além disso, estava sem comer havia várias horas por causa das análises e sentia-me muito fraca. A minha amiga comprou-me comida mas não fui capaz de comer nada. Não me passava na garganta e acabei por chorar. Ela dizia-me:
– Não chores aqui, aguenta-te um bocadinho, que estamos a chegar a casa. Aqui na rua vais dar nas vistas…
E ali estivemos à espera, mais de um quarto de hora, na estação do metro. A minha amiga insistia…
– Aguenta-te, estamos a chegar a casa…
Mas eu sentia-me cada vez pior. E, quando chegou o metro, as pessoas começaram a correr e formou-se uma grande multidão. A minha amiga sugeriu:
– O que é que achas de dizermos que estás grávida, para te darem o lugar?
Nesse instante, desmaiei. Ouvir aquilo foi demais para mim. Não sei o que me aconteceu, mas recordo que a primeira coisa que vi quando abri os olhos foi o mostrador do meu relógio e as pessoas a darem-me ar. Toda a gente me estava a oprimir quando chegou o segurança da estação para lavrar a acta do sucedido. Levaram-me até às bilheteiras no piso superior da estação e mandaram chamar o Samur, que demorou meia hora a chegar. Quando chegaram, a minha amiga explicou tudo o que acontecera: que estava grávida, que tinha abortado e que tinha desmaiado.
Mas a história não acabou por aqui. Quando estavam a acompanhar-me à ambulância estacionada no exterior, os dois médicos do Samur quiseram pôr-me um casaco por cima, porque eu estava a tiritar de frio. Eu não queria, e eles disseram-me:
– Não vai pôr porquê? Qualquer dia, quando o seu filho não quiser vestir o casaco, o que é que vai fazer?
E eu pensava: “Qual filho? Eu vou perdê-lo agora… “. Foi como uma punhalada no coração. Na ambulância, foram-me explicando tudo o que tinha de fazer. Deram-me um sumo de laranja e um bolo e depois voltei para casa de táxi.
“Agora, já não há nada a fazer… ”
Quando chegámos, a minha amiga ajudou-me a deitar e foi à farmácia. Adormeci e comecei a sonhar: vi uma menina que vinha na minha direcção. Tinha quatro ou cinco anos e o cabelo castanho e encaracolado preso em dois totós. Usava umas calças castanhas e uma t-shirt vermelha. Parou à minha frente e pôs-se a olhar para mim com as mãos cruzadas atrás das costa, a balançar. Deteve-se e disse:
– Adeus, mamã!
Ainda me vêm as lágrimas aos olhos quando me lembro. Sinto uma dor tão profunda que não tem explicação. É a dor de querer recuperar o irrecuperável. Este não foi o único pesadelo que tive. Houve muitos mais e mais espantosos.
Quando acordei, fui à casa de banho a pensar que não havia remédio. Ainda não conseguia acreditar no que fizera. Quando hemorragia começou, pensei: “Agora, já não há nada a fazer…
A dor que me invadia era profunda e o arrependimento enorme… Não me deviam ter deixado abortar, aqueles comprimidos deviam ser proibidos.
Passados dois dias, voltei à clínica para receber o segundo comprimido e tornei a ter tonturas. Deitaram-me numa maca, como se tivesse saído da sala de operações. A enfermeira disse-me que não percebia como podia ter tonturas se não tinha a tensão baixa, e eu disparei:
– Por acaso pensa que estou a fingir as tonturas?
Então, ela começou a mostrar-se mais compreensiva comigo:
– Teve uma gravidez com muitos enjoos?
– Tive – disse-lhe -, vomitei desde o início…
Deram-me a segunda dose e aconselharam-me a não ficar sentada. Que fizesse exercício físico e me mantivesse o mais activa possível, para ajudar os restos do feto a saírem. A enfermeira disse:
– Pode ser que saiam enquanto aqui está na clínica; mas, se isso não acontecer, tem de ir para casa, porque vamos fechar.
Fiquei até ao fim. Vi passar outras raparigas, umas muito contentes por se terem livrado do “problema” e outras destroçadas, como eu. A única coisa em que pensava era que aquilo devia estar prestes a acabar, mas não. Estive um mês inteiro com perdas de sangue. Garantiram-me que nos dias seguintes haveria de expulsar os restos, mas o tempo ia passando e no meu corpo não acontecia o que tinha de acontecer.
A minha amiga teve de regressar a Alicante e eu fiquei em Madrid, um pouco mais restabelecida. O problema era que continuava sem expulsar o feto. De maneira que, um dia, decidi dirigir-me à Fundación Jiménez Díaz, na Praça de Cristo-Rei, em Madrid, para ver o que se passava. Quando cheguei, o ginecologista perguntou-me o que eu tinha.
– Nada, é que fiz um aborto – respondi.
– Espontâneo ou não? – disse ele.
– Não – admiti.
– Pois! Quer dizer, os outros “dão a bronca” e agora tenho de ser eu a resolvê-la.
– Não me diga isso, estou destroçada… – lamentei-me.
– Em que clínica o fez?
– Na Dátor. Disseram-me que era a melhor.
– Sim, claro. Em terra de cegos, quem tem um olho é rei… – troçou.
O ginecologista explicou-me que o feto não tinha, obviamente, sido expulso, porque ficara preso. Assim sendo, extraiu-mo com uma pinça.
Mas o que ainda não contei é que, uns dias antes de ir à fundação, fui a Alicante ao aniversário duma amiga. Apanhei uma bebedeira porque sabia que assim ia poder dormir descansada. Mas, como vomitei tudo, custou-me muito. Por fim, adormeci e, curiosamente, foi essa a última vez em que tive pesadelos. O que sucedeu três dias antes de ir à Fundación Jiménez Díaz. Agora tenho remorsos, porque, se tivesse ido mais cedo, talvez o tivesse salvado. Não sei. Agora não se pode voltar atrás.
(In “Eu abortei – Testemunhos de abortos provocados”, de Sara Martín Garcia, Editora Principia)
Nota da autora: A minha participação neste livro consistiu em compilar e ordenar estes testemunhos, dando-lhes a forma de histórias e uma unidade. Todos eles são reais, embora, na maioria dos casos, os nomes utilizados sejam fictícios, para proteger a privacidade dos autores.
O testemunho de Maria chega-nos através de uma carta ao director de La Razón, o jornal que a publicou em Janeiro de 2001. Em dois parágrafos apenas, esta mulher de 31 anos conta-nos o que sofre agora depois do aborto e como pede perdão ao seu próprio filho.
Tenho 31 anos e matei deliberadamente o meu filho. Quando soube que estava grávida, não contei a ninguém. As minhas perguntas eram: o que é que eu vou fazer? Que hei-de fazer com o meu filho? Absurda, egoísta, calculista e fria como uma pedra. Só me queria livrar daquilo que me perturbava e fui à clínica.
Santo Deus! Como fui estúpida! Agora penso no meu bebé a cada instante, penso que sou egoísta, fria, criminosa… De certeza que poderia ser bem-sucedida, como tantas mulheres. Quem me irá perdoar isto? O meu bebé já não está cá, e eu estou vazia, completamente vazia. Quero que Deus me perdoe, mas penso que o que fiz foi tão cruel que nem sequer Deus me pode perdoar. Nem o meu bebé, que não teve a oportunidade de ver o Sol, ou o mar, nem de respirar… Nada. Fui eu o seu juiz e condenei-o à morte só pelo facto de existir, de estar dentro de mim. O meu bebé, por quem choro agora… Espero, meu filho, que algum dia me possas perdoar. Eu nunca hei-de perdoar a mim mesma enquanto viver.
Madrid La Razón, 10 de Janeiro de 2001
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